MPF questiona Projeto de hidrogênio verde no Piauí

A imagem mostra uma revoada de guarás (aves de cor vermelha vibrante) sobrevoando uma paisagem natural deslumbrante. As aves estão em pleno voo, com asas abertas, formando um grupo que se destaca intensamente contra o azul do céu e o tom escuro do rio logo abaixo. Ao fundo, há dunas claras e vegetação densa, compondo um cenário típico do Delta do Parnaíba, no Piauí
O MPF aponta uma série de irregularidades no processo de licenciamento ambiental e questiona os impactos socioambientais do empreendimento, que pode comprometer a biodiversidade do Delta do Parnaíba | Foto: Chico Rasta

Anunciado como solução para a transição energética global, o projeto de uma usina de hidrogênio verde e amônia no município de Parnaíba (PI) se tornou alvo de uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF). Na petição inicial, o órgão aponta uma série de irregularidades no processo de licenciamento ambiental e questiona os impactos socioambientais do empreendimento, que pode comprometer a biodiversidade do Delta do Parnaíba e o modo de vida de milhares de famílias extrativistas.

O empreendimento, da empresa Solatio, foi licenciado pelo Governo do Estado do Piauí por meio da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh), e é defendido como uma iniciativa estratégica para colocar o Estado no mapa da nova economia verde global. Na prática, o projeto prevê a captação de 3.800 m3 de água por hora do Rio Parnaíba – volume cinco vezes superior ao consumo de toda a cidade de Parnaíba – e o uso de 3.000 MW de energia para alimentar a planta industrial.

Um dos principais pontos levantados pelo MPF e por pesquisadores entrevistados é o chamado “fatiamento do licenciamento”. Segundo o geógrafo João Paulo Centelhas, professor da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e integrante do GT Energia, ao licenciar apenas a planta industrial da usina, o Estado do Piauí ignorou etapas essenciais do processo, como captação e transporte da água, despejo de efluentes e construção do amonioduto até o Porto de Luís Correia. “Busca-se invisibilizar os impactos sobre um rio federal, uma unidade de conservação federal e dois estados (Piauí e Maranhão)”, afirma. Segundo ele, essa manobra permitiu manter a competência do licenciamento sob controle estadual, quando, pela legislação, deveria ser de responsabilidade do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Ibama).

Tanto João Paulo Centelhas quanto o professor Francisco Soares, do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal do Piauí (Prodema/UFPI), chamam atenção para a retirada massiva de água do Rio Parnaíba. Segundo Soares, isso pode afetar não apenas a fauna aquática, mas também aves migratórias e residentes, como o guará-vermelho, ave típica do Delta do Parnaíba. “Se você não estuda o impacto sobre os crustáceos, está atingindo diretamente os guarás”, alerta o professor. João Paulo complementa: “a salinização dos poços artesianos na Reserva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba (Resex Delta) é um fenômeno recente que tende a se agravar com a instalação da usina”.

A imagem mostra dois pescadores em um pequeno barco de madeira sobre águas barrentas, no Delta do Parnaíba, no Piauí. Ambos vestem chapéus de palha para se proteger do sol. O pescador à esquerda, de camisa vermelha, está de pé, puxando uma rede de pesca molhada. O outro, com camisa azul, está sentado na parte traseira do barco, observando o trabalho do companheiro. Ao fundo, vê-se uma faixa de areia clara e uma vegetação rasteira sob um céu azul limpo. A cena retrata o cotidiano da pesca artesanal em uma paisagem natural e tranquila
O modo de vida de milhares de famílias extrativistas do Delta do Parnaíba pode ser afetado, de acordo com o MPF | Foto: Enrico Marone

Luciano Galeno, membro do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), afirma que a população tradicional do Delta foi pega de surpresa. “A gente sabia que haveria um projeto, mas nunca fomos informados de quando ou como aconteceria. Ninguém explicou o que é hidrogênio verde”, critica. Segundo ele, a audiência pública foi realizada sem divulgação adequada e o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) só foi acessado pela Pastoral a menos de uma semana do evento. “Houve um conjunto de falhas conduzidas pelo governo do Estado e pela Semarh”, pontua.

Justiça ambiental e direitos violados

Para a advogada socioambiental Rhavena Madeira, diretora do Instituto Filha do Sol de Adaptação Climática, o caso representa uma violação grave de direitos fundamentais. “Estamos falando de um dos principais rios do Nordeste e de um dos maiores deltas oceânicos do mundo. A licença social foi ignorada”, afirma. Segundo ela, o fracionamento do licenciamento, a ausência de consulta às comunidades da Resex Delta e a concessão de licença sem análise completa dos impactos demonstram uma “pressa imprudente” e um “atropelo da legislação ambiental federal”.

Ela destaca ainda que o MPF elencou oito pontos centrais na ação: desde incompetência da Semarh até falta de outorga hídrica e ausência de autorização do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). “Quando um licenciamento ambiental é desrespeitado, os custos sociais e ecológicos são transferidos para a sociedade”, sentancia.

Biodiversidade em risco

De acordo com os especialistas ouvidos, os impactos sobre o Delta do Parnaíba e a Reserva Extrativista são extensos e pouco mensurados. Francisco Soares destaca que o ecossistema é de equilíbrio tênue, com relações delicadas entre manguezais, dunas, aves, peixes e crustáceos. João Paulo Centelhas aponta consequências como aumento da salinidade, turbidez, toxinas e redução da produtividade dos manguezais. “Pode ocorrer perda de habitat e simplificação da cadeia alimentar”, alerta. Isso afeta diretamente a renda e a sobrevivência das mais de 1.500 famílias que dependem do Delta para subsistência, alertam.

Mulheres pescadoras resistem

Celeste de Souza, pescadora artesanal e liderança do Movimento dos Pescadores Artesanais do Brasil, afirma que as comunidades não foram consultadas e que o projeto representa uma violência. “Recebemos isso como uma agressão. Ninguém explicou nada. A audiência foi esvaziada”, conta.

Ela teme que os resíduos tóxicos da produção de amônia contaminem o pescado e afetem diretamente a saúde das mulheres que vivem da mariscagem: “isso extermina a pesca, afeta o estoque pesqueiro, a nossa saúde e a dos nossos corpos. É uma violência contra as mulheres das marés” Segundo ela, o movimento já acionou o Ministério Público Federal e articula resistência junto a universidades e entidades como o CPP e a Rede Ambiental do Piauí (Reapi).

Para quem é a energia?

Os entrevistados também questionam o destino da energia gerada no Piauí. Francisco Soares observa que a eletricidade produzida por usinas eólicas e solares na região não é consumida localmente. “Vai para o Sudeste. É um contrassenso dizer que esse projeto é verde se ele nem usa energia renovável na região”, afirma. João Paulo vai mais longe: “a geração de energia virou um negócio lucrativo de capitais multinacionais. O Piauí se tornou apenas sede física da exploração”.

Para ele, o modelo atual serve menos à sociedade brasileira e mais a grandes empreendimentos, como data centers e usinas de hidrogênio verde voltadas à exportação. “Produzir energia para quem? Para quê?”, questiona.

Em nota, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh) informou que está atuando dentro dos parâmetros legais no processo de licenciamento do projeto de Hidrogênio Verde no litoral do Piauí, em conformidade com a legislação ambiental vigente. A Secretaria afirma ainda que responderá aos questionamentos do Ministério Público Federal dentro dos prazos e trâmites legais previstos no processo.

Procurada pela reportagem, a Solatio Hidrogênio Piauí Gestão de Projetos Ltda., empresa responsável pelo empreendimento, afirmou que o projeto representa uma iniciativa estratégica para a transição energética brasileira e mundial. A empresa reforça seu compromisso com a legalidade, a sustentabilidade e o diálogo com a sociedade e autoridades.

Leia a íntegra da nota

“A Solatio Hidrogênio Piauí Gestão de Projetos Ltda., empresa responsável pelo desenvolvimento do projeto de hidrogênio verde no município de Parnaíba, Piauí, reafirma seu compromisso inegociável com a sustentabilidade ambiental e o rigoroso cumprimento de todas as normas técnicas, regulatórias e legais aplicáveis a um empreendimento desse porte e natureza.

Reconhecemos a importância do diálogo construtivo e transparente com a sociedade e com as autoridades competentes e estamos prontos para esclarecer todas as questões levantadas, de forma diligente, transparente, responsável e dentro dos prazos.

O projeto Solatio H2V Piauí representa uma iniciativa estratégica para a transição energética brasileira e mundial, alinhada com os objetivos de descarbonização e desenvolvimento econômico e social justo e sustentável.

Estamos confiantes que as incertezas apontadas serão esclarecidas e disponíveis para corrigir eventuais incorreções.”

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